A Agonia do Cerrado
A Agonia do Cerrado
Vivemos tempos de intolerância com instituições, governos, religiões, indivíduos e suas escolhas. Sem dúvida tempos difíceis! Concerne a nós da Fundação Villas-Bôas como instituição defensora de todas as populações de fauna e flora, humanas e não humanas,indígenas e não-indígenas, tradicionais e não tradicionais que não tem voz ativa nos meios de comunicação, que não tem espaço nas mídias sociais, que não tem acesso sequer a elas e mesmo que tivessem não saberiam como expressar sua indignação com a intolerância e a verdadeira marcha de destruição que se lança a toda a força sobre seus habitats, suas vidas, suas moradias, suas aldeias, suas histórias e sua existência e franca erradicação.
Por hora gostaríamos de abordar o bioma que teve sua extinção decretada este ano pela ciência brasileira, especificamente pela PUC (Pontífice Universidade Católica) do estado de Goiás, via o professor doutor Altair Sales Barbosa, Antropólogo, Arqueólogo e professor da respectiva universidade que já está organizando o Memorial do Cerrado.
Infelizmente não há argumentos suficientes para discordar do professor, mesmo com o coração apertado pela agonia desta verdade e a mente lutando, mapeando, pressionando a cabeça “mas o cerrado é tão grande!”. Mentalmente procuramos mapas do cerrado brasileiro, vamos ao atlas, vamos aos buscadores de imagens da internet e ele está lá! Entre a chapada dos Parecis em Rondônia até o reverso das escarpas de colúvio da chapada Diamantina; das vertentes das serras das Araras, Roncador, Dourada e da Mesa até o monumental Espigão Mestre até as últimas escarpas do sul da serra do Maracaju, pela Depressão Periférica Paulista até proximidades do reverso das escarpas da serra da Mantiqueira e do Espinhaço! Um tapete verde amarelado no coração do Brasil. Mas trata-se apenas da área que foi – no passado - ocupada por esta paisagem rústica, bela e luxuriante! No passado antes dos Planos de Integração da Amazônia, do Polo Amazônia e do Polo Centro Oeste, antes da expansão da fronteira agrícola, antes do advento da calagem – verdadeiro “estupro químico” do solo para o plantio de milhares e milhares de hectares de soja cobrindo imensas áreasdos estados do centro oeste brasileiro.
Hoje é possível correr pela rodovia Marechal Rondon – BR 364 - por dias de campos de soja nos estados do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso até Rondônia e pela rodovia Transbrasiliana – BR 153 (mais conhecida como Belém Brasília), nos estados de Goiás e Tocantins. Silos prateados reluzem sobre um mar de campos verdes sob o calor fustigante do interior do território brasileiro. Lembro-me do ano 2000 quando passei por essas áreas a caminho de congressos comemorativos dos 500 anos de história do Brasil, no norte e ele ainda estava lá! O cerrado ainda estava lá! Por horas e horas de viagem! Estendido feito o tapete verde amarelado que era, salpicado de arbustivas e arbustivas arbóreas retorcidas com suas folhas grossas que disparavam óleo ao quebrá-las para coletas dos experimentos de viagem da faculdade, as cascas dos troncos e galhadas que estouravam um pó com odor forte, a figura magnífica retorcida daqueles indivíduos de fauna esparsos sobre o céu azul anil de um universo ainda intocado.
A primeira vez que soube do “correntão” – método usual para o desmatamento do cerrado ainda vigente nos menos de 7% que restam, segundo o professor Altair, foi em conversa de viagem entre geógrafos, profissão da qual partilho as dores e alegrias de ter por escolha e paixão pelo meu país.
Não consegui acreditar na crueldade do método. Tratores utilizam correntes de âncora de navios de grande calado - correntes de peso elevado e grande extensão, portanto – e seguem arrastando por centenas de hectares a vegetação indefesa.
Imagens desse verdadeiro extermínio são, assim como mapas da área do cerrado no Brasil, fáceis de encontrar nos buscadores de imagens da internet “correntão” e “cerrado” são as palavras chave indicadas para encontrá-las e sangue frio para ampliá-las e analisá-las.
Todos os seres vivos tem o direito de se defender quando atacados. Quando o ataque é massivo, sem defesa e sobre contingentes humanos é chamado genocídio.
Qual a palavra para o uso da técnica do “correntão” no cerrado brasileiro.
“ Limpar “, diz o empreiteiro responsável pelo preparo da área que será um futuro plantel de soja.
Já ouvi este termo antes. Muito usado por sitiantes e chacareiros aqui do sul para retirada de mata atlântica que é substituída por roçados de mandioca e banana porque “o solo por aqui é muito ruim”!
Ruim? Tão ruim que era coberto pela Mata Atlântica “o mato enjoado” e sua biodiversidade que até hoje nos seus menos de 5% de existência é considerada uma das maiores do planeta.
Há um descompasso, portanto, e a olhos vistos! O que é riqueza? Faturar milhões com a venda de soja aos estadunidenses, japoneses e alguns países europeus ou a diversidade de fauna, flora e farmacologia de um bioma natural, também se encontramdefinidos os defensores de cada um dos lados.
Temos, portanto, uma derrota monumental com a afirmação do professor Altair.
Há muito a discutir sobre sua argumentação bastante edificada como estudioso da questão, afinal assim caminha a ciência e ainda bem, mas não há como refutar a ideia principal. O Brasil marcha sobre seu próprio território como uma lagarta de tanque de guerra, demolindo sua natureza em nome de valores econômicos e prerrogativas de exportação que ainda remetem ao velho modelo monocultor colonial de mais de 500 anos atrás.
Sem dúvida uma reflexão profunda que concerne a nós da Fundação Villas-Bôas – como já foi citado no início deste texto – e concerne também a todos os brasileiros, pois esta paisagem não estava só! Além dos indivíduos e populações de flora, lá também estavam os magníficos indivíduos de fauna, as populações tradicionais e não tradicionais, os indígenas e não indígenas ícones de nossa cultura! O sertanejo das veredas de Guimarães Rosa e Rachel de Queiroz! Para onde foram todos? O tamanduá bandeira, a onça pintada e o lobo guará agora pilotam as ceifadeiras/semeadeiras com ar condicionado que preparam os campos para o plantel? Os sertanejos e indígenas trabalham no ensacamento e silagem dos grãos? Alguém pensou em alguma forma de proteção, conservação, preservação ou inserção dessas populações? E as espécies e seu valioso conteúdo farmacológico? Alguém pensou? O professor Altair pensa quando fala da montagem de um memorial do cerrado.
Então é este o triste e inegável fim?
Não consigo expressar em palavras, a dor que sinto como brasileira, como geógrafa, como pesquisadora, como professora que luto todos os dias para continuar sendo e lutar para transmitir em salas de aula fechadas em prédios aqui na “urbes” cinzenta paulistana a agonia das paisagens naturais brasileiras.
A agonia do cerrado em ser exterminado sem direito de defesa alguma!
A agonia da qual partilhamos nós geógrafos, biólogos, ambientalistas e demais cientistas envolvidos com este triste processo e ter que estudá-lo com frieza científica devida para elaborar modelos, gráficos de dados e diagnósticos precisos necessários à constatação, como faz com maestria o professor Altair. O primeiro a ter coragem de afirmar: “O cerrado brasileiro está extinto!”.
Dizem que o melhor caminho para a cura é um diagnóstico preciso.
Infelizmente - neste caso – não.
Angélica Pastori de Araujo
Coordenadora Expedicionária da Fundação Villas-Bôas
Graduada em Geografia pela Universidade de São Paulo
Geógrafa e Pesquisadora das Fronteiras Amazônicas há 20 anos
Professora do CursinhoPré Vestibular Hexag em São Paulo